CIDADE E PATRIMÔNIO NATURAL
*Udo Mohr
O equilíbrio que sempre existiu nas relações do homem com o meio natural desfez-se nos dois últimos séculos. Neste período, que corresponde à sedimentação do modelo capitalista de sociedade, passou-se a utilizar a natureza de modo predatório, comprometendo os recursos naturais e gerando estruturas e resíduos capazes de colocar em risco, não só a sobrevivência do ser humano, mas a própria existência da vida sobre o planeta.
A cidade, "berço e residência da civilização", foi fundamental na criação deste quadro sombrio. As formas de desenvolvimento dos espaços urbanos vêm, nas últimas décadas, evidenciando o desrespeito às características e condições do meio natural sobre o qual se implantam. Em conseqüência, rompido o equilíbrio preexistente, criam-se problemas que, muitas vezes, se transformam em catástrofes, afetando tanto o meio natural quanto a própria cidade e, nela, a vida humana. Também como irradiadora de decisões que atingem as áreas não urbanas, como consumidora de insumos ou, ainda, como fonte de resíduos transpostos para o meio rural, a cidade é fator de comprometimento ambiental também fora de seus limites.
A necessidade de manter condições ambientais que assegurem a continuidade da vida no planeta é, pois, tema essencial quando abordamos a questão urbana ou a questão rural. Na esfera do município, aparentemente não são possíveis medidas que visem o equilíbrio planetário ou mesmo regional. Mas, quando consideramos que as regiões se compõem do somatório das áreas municipais e que todos os componentes dos ecossistemas estão inter-relacionados, verificamos a importância de tratarmos com ênfase a questão ambiental em nível municipal.
Ainda, ao considerar que todas as decisões que afetam o planeta são tomadas na cidade, pode-se constatar a importância de tratar a questão ambiental na esfera urbana. O espaço das relações, seja entre os homens ou destes com seu meio, é o lugar em que vivem - a cidade ou o campo. Portanto, é na esfera do município que a realidade pode ser percebida e, da mesma forma, abordada concretamente.
O enfoque da temática ambiental só pode se dar, por pressuposto, de forma holística. Ao tratar desta questão na esfera da cidade e do município, o grande desafio que se coloca é o do equacionamento do desenvolvimento urbano sustentado. Substituir o equilíbrio natural existente previamente à construção da malha urbana por um novo equilíbrio urbano é tarefa que implica providências especiais, envolvendo desde o conhecimento completo das características e condições do sítio natural preexistente, até a implementação de uma política integrada de gestão ambiental.
Porto Alegre se localiza num sítio geográfico privilegiado. Situada na confluência de várias regiões fisiográficas, o Município se compõe de terrenos graníticos circundados de planícies de formação aluvial. Os primeiros, extremamente estáveis em decorrência de sua remota origem geológica, os últimos de grande instabilidade, pois ainda se encontram em processo de formação. A ocupação antrópica se deu, indistintamente, sobre parcelas das duas regiões ocasionando padrões territoriais distintos e diferentes graus de adaptação ao meio natural. As características da utilização também apresentam grandes diferenças. A sobreposição destas condições ocasiona um mosaico extremamente complexo para o estudo e para as propostas de disciplinamento do desenvolvimento do município.
Ao tratar da gestão do espaço físico do Município, temática que culmina no Plano Diretor, é importante reconhecer, não apenas as condições atuais da estrutura física dos assentamentos e do substrato natural, mas compreender a evolução da ocupação, identificar os conflitos criados e descobrir os potenciais tanto do sítio como das estruturas sobre ele edificadas.
Apesar do crescimento de Porto Alegre ter-se dado, desde a instalação do povoado, em harmonia com o meio, nas últimas décadas o equilíbrio foi rompido pelo descontrolado crescimento imobiliário e pelos conseqüentes efeitos da densificação e da expansão urbana. Os planos diretores, desde o primeiro de 1959, em que pesem as preocupações do pioneiro Edvaldo Paiva, não foram capazes de evitar a desqualificação do espaço urbano e o comprometimento do meio natural. Porto Alegre apresenta hoje um contexto físico numa situação limite em que, não sendo tomadas atitudes enérgicas e urgentes, passará a perder as qualidades que a distingem de outras cidades de seu porte.
Algumas formações naturais excepcionais se perderam irremediavelmente, muitas paisagens importantes ainda estão praticamente intactas, outras podem ser recuperadas para resgatar não apenas seu interesse como bens paisagísticos, mas como forma de restaurar o equilíbrio rompido pelo crescimento descontrolado. Cabe, pois, preservar espaços intactos, quando se constituírem em paisagens notáveis ou ecossistemas importantes e utilizar as áreas menos vulneráveis com atividades ou estruturas apropriadas e procedimentos conservacionistas.
O desenvolvimento urbano deve ter seu disciplinamento calibrado, principalmente com base na avaliação dos resultados da aplicação da legislação e com vistas às transformações impostas pelas evoluções tecnológicas. Manter os espaços bem estruturados, qualificar as áreas comprometidas, reorganizar as funções e atividades, criar lugares com melhores condições de vida para a população, são metas objetivas para a melhoria da cidade. O disciplinamento não é suficiente quando trata apenas da cidade oficial. É necessário que se pense a cidade real, em que o crescimento autoproduzido pelas populações carentes ou os loteamentos gerados clandestinamente são problemas tanto para os próprios moradores como para o meio ambiente.
A temática do patrimônio ambiental engloba, no mesmo nível de importância, o ambiente cultural assim como todos os demais espaços do município e suas condições. Independentemente do grau de transformação do meio, todo o território deve ser considerado, desde aquele absolutamente preservado até àquele totalmente transformado. Planejamento e gestão territorial somente serão eficientes se estiverem absolutamente comprometidos com a temática do meio ambiente.
Não é possível, atualmente, manter uma atitude de defesa única e intransigente da natureza intacta. Isto também não é necessário, desde que se saiba onde, em que extensão e como transformá-la. Significa trabalhar em coerência com as "leis" do equilíbrio ambiental. Esta é a condição para gerir a cidade de forma equilibrada.
As diretrizes básicas desta política devem incorporar o conceito de desenvolvimento sustentável, reforçar a necessidade da criação de unidades de preservação, introduzir a diretriz da ocupação e utilização com conservação, estabelecer critérios de organização das funções urbanas (buscando o equilíbrio das unidades locais através da polarização e da auto-suficiência), ter presente a noção das transformações resultantes da revolução da informática e das comunicações e das novas potencialidades decorrentes e, principalmente, contar com a participação da população nas discussões e decisões.
Ao passo que se aproveitam os aspectos positivos dos novos recursos tecnológicos, não deve ser descurada a preocupação com a preservação dos valores tradicionais. Eles constituem a referência (histórica, psicológica e antropológica) necessária ao desenvolvimento saudável da sociedade urbana. Muitas das soluções para as necessidades da organização da sociedade, testadas e depuradas ao longo dos anos, formam patrimônio que não deve ser perdido. Muitas das alternativas urbanas usuais ainda se constituem nas melhores respostas para o presente e, certamente, serão importantes no futuro. Não só paisagens, lugares, marcos, mas procedimentos e costumes são valores que acentuam a riqueza de nossas particularidades locais.
* ARQUITETO/ PROFESSOR DA FACULDADE RITTER DOS REIS/ CONSULTOR DO 2º PDDUA.
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