PATRIMÔNIO CULTURAL, A CIDADE E O PLANO DIRETOR

*Elena Graeff

"O que devemos aprender com os antigos, é como fazer o novo" (Bertold Brecht)

Já é nacionalmente reconhecida a tradição e rica experiência de Porto Alegre na convivência com planos diretores, o que permite que se façam avaliações dos reflexos das várias normativas no território e ambiente urbano. Em relação ao patrimônio ambiental, em especial ao de interesse cultural, o 1º PDDU expressou uma preocupação basicamente com a paisagem urbana, bem como com "...a preservação daqueles (espaços) que, culturalmente, emprestaram significado à história da cidade." Nesse sentido, o Plano criou um instrumento valioso para a preservação, através da instituição das Áreas Funcionais. Reconhecendo o caráter de excepcionalidade de determinadas áreas no tecido urbano - nos seus aspectos ecológicos, paisagísticos e culturais, permitia tratamento diferenciado às mesmas, outorgando-lhes regimes urbanísticos especiais.

Complementarmente, foram indicados elementos pontuais de preservação, através de uma listagem de bens imóveis, além de estabelecer em vários artigos relativos a dispositivos de controle das edificações - aumento de alturas, taxas, índices etc - formas de incentivo à preservação dos imóveis listados. Também foi prevista a possibilidade de se utilizar a transferência de índices construtivos potenciais de um determinado imóvel, para viabilizar tombamentos em casos de desapropriações executadas pelo Poder Público. Não há dúvida de que a criação destes instrumentos foi inovadora para a época e, graças a eles, grande parte do Patrimônio Cultural se preservou.

No entanto, durante o longo período de aplicação das normas do 1º PDDU, em todos os setores que envolvem a ocupação do território, foram identificados conflitos e inadequações face à realidade e à dinâmica de desenvolvimento da cidade. Disso resultaram inevitáveis adequações, alterações pontuais e circunstanciais, além de revisões parciais da legislação, que modificaram consideravelmente sua estrutura, a ponto de prejudicar a coerência entre seus dispositivos, considerada exemplar.

Nas questões específicas que envolvem o patrimônio cultural construído, os conflitos derivam principalmente de alterações conceituais ocorridas da década de 70 até o momento. Preocupava-se, então, com a valorização pontual dos elementos a serem preservados, geralmente priorizando edificações de valor monumental - palácios, mansões, sedes de órgãos governamentais. Hoje, entende-se que o patrimônio cultural "não se refere apenas a monumentos que representam os melhores momentos de um povo. Ele abrange tudo aquilo que permita compreender o homem e a sua cultura..."

Espaços abertos e conjuntos construídos, envolvendo os bens e seus contextos mais amplos, assim como a compatibilização destes com as novas inserções no tecido urbano já consolidado, passam a ser objeto de interesse da preservação. Por outro lado, ambiências e traçados urbanísticos são valores culturais que não devem ser perdidos. Mais ainda, manifestações coletivas tais como festas tradicionais, rituais e simples pontos de referência da população também caracterizam patrimônio a ser preservado.

Em síntese, essa nova e abrangente visão foi expressa na própria Constituição Federal de 1988 quando se referiu ao Patrimônio Cultural como qualquer manifestação material ou imaterial que seja representativa do homem e da cultura. Posteriormente, no âmbito local, a Lei Orgânica do Município absorveu e reforçou esses princípios, coerente com a Lei Federal.

A partir daí, tornou-se imprescindível "interpretar o papel da preservação do patrimônio cultural na dinâmica urbana, integrando-o ao processo de desenvolvimento da cidade como elemento potencial de qualificação do ambiente." Acrescente-se aos aspectos conceituais descritos, a prática cotidiana dos técnicos da Prefeitura, que assistiram ao longo desses anos muitos dos bens de interesse para preservação serem destruídos ou totalmente descaracterizados. A especulação imobiliária, no afã do lucro imediato, atendendo à legislação na sua visão estritamente pontual, isto é, no que se refere a diretrizes específicas de ocupação do lote, tratado individualmente, também muito contribuiu para a demolição e substituição de estruturas que perfeitamente poderiam ter sido preservadas, sem inviabilizar novos empreendimentos.

Estas situações vieram a reforçar a convicção de que, "além de medidas de caráter específico para a preservação do Patrimônio Cultural, o tema deve vincular-se de forma estreita com as diretrizes gerais de ocupação do território (...) como instrumento de política urbana, o Plano Diretor é, também, instrumento fundamental para uma adequada política de preservação (...) e deve compatibilizar as políticas de preservação com as diretrizes de ocupação do território, evitando conflitos de objetivos."

As propostas expressas no 2º PDDUA levam em consideração a necessidade de reformular os princípios do 1º PDDU, atualizando-os e adequando-os a outros tempos, não no sentido de mera substituição ou negação mas, ao contrário, com a intenção de referendá-los e enriquecê-los, incorporando aos mesmos as lições da práxis.

As novas proposições classificam-se basicamente em três níveis: reconceituação de premissas, formulação de uma nova abordagem para os espaços com interesse para preservação, e a inserção de novos instrumentos de conhecimento e de ação. As novas concepções definiram como ponto de partida a abordagem do espaço urbano como um único ambiente, onde se caracterizam o patrimônio natural e o patrimônio cultural. Os espaços de ocorrência desses patrimônios foram identificados como Áreas Especiais de Interesse Ambiental, que dividem-se em Áreas de Conservação Ambiental e Áreas de Interesse Cultural.

As ÁREAS DE INTERESSE CULTURAL substituem as Áreas Funcionais de Interesse Paisagístico e Cultural existentes no 1º PDDU, mantendo seu caráter de excepcionalidade e, como tal, exigindo tratamento diferenciado através de regimes urbanísticos próprios. Estas "AFs" originais serão reavaliadas, podendo ocorrer alterações nos seus limites e inclusive a extinção, em situações onde não mais existirem as características que justificaram, na época, o tratamento especial a elas aferido. Além disso, como conseqüência dos novos conceitos adotados, novas Áreas Especiais foram identificadas, para as quais serão fornecidos regimes urbanísticos e limites precisos em prazo estipulado pela Lei.

A nova abordagem dos espaços físicos que demandam tratamento diferenciado levou à criação dos LUGARES e UNIDADES de interesse para preservação, em função de escalas diferentes. A relação das UNIDADES ainda se fará em forma de listagem, agora denominados BENS INVENTARIADOS, DE ESTRUTURAÇÃO E DE COMPATIBILIZAÇÃO, substituindo as de Interesse Sócio-Cultural e de Adequação Volumétrica, respectivamente.

Todos os bens que constituem o Patrimônio Cultural serão identificados através de INVENTÁRIOS, com critérios próprios de seleção. O inventário, portanto, passa a ser reconhecido como instrumento de conhecimento. Em relação a outros instrumentos, manteve-se a possibilidade de transferir potenciais construtivos; previu-se a criação de incentivos fiscais à preservação e a regulamentação de veículos de publicidade em Áreas de Interesse Ambiental, através de leis específicas; ampliaram-se as penalidades a quem desfigurar ou descaracterizar bens do patrimônio ambiental - seja ambiental ou cultural; e, ainda, conforme o Plano Regulador, que prevê exceções às normas padrões através de mecanismos previstos nas Operações Concertadas, as questões que envolvem o Patrimônio Cultural também poderão ser objeto de projetos especiais.

Finalizando, é fundamental localizar o Patrimônio Cultural entre as concepções gerais do 2º PDDUA. Este Plano caracteriza-se por ser não somente um conjunto de normas que regem a ocupação do solo urbano, mas principalmente por insistir na idéia de planejamento urbano como um "processo projetual", formulado através do conteúdo programático de sete estratégias básicas, que deverão orientar o desenvolvimento da cidade, num processo coletivo, com ampla participação dos cidadãos, no qual o Poder Público Municipal deverá atuar como grande articulador e indutor das ações de planejamento.

As proposições normativas aqui citadas estão expressas no Plano Regulador – que constitui parte da ESTRATÉGIA DE USO DO SOLO PRIVADO - no que se refere ao disciplinamento do uso e ocupação do solo. Porém, o conjunto do Patrimônio Cultural, além de seu significado como elemento do processo de construção da memória coletiva de uma sociedade, e como expressão das diversidades, que identificam uma cultura específica, tem, também, um papel importante na estruturação do urbano, que é o de qualificar o espaço público.

Neste sentido, o tema está inserido na ESTRATÉGIA DE ESTRUTURAÇÃO URBANA, no Programa de Espaços Abertos, através de projetos e ações, que deverão ser desenvolvidos quando da implementação do 2º PDDUA. Em síntese, além de espaços e conjuntos edificados, praças e parques, estão sendo valorizados bairros ou parte de bairros que apresentem ambiências peculiares, e revalorizadas paisagens significativas, tanto do ambiente natural como da cidade consolidada, assim como toda a orla do Guaíba, verdadeiro privilégio para a população que usufrui desse cenário incomparável.

*arquiteta/ Técnica da Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria Municipal da Cultura/ Coordenadora do Grupo de Patrimônio Ambiental e Cultural do 2º PDDUA.

 

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